domingo, 30 de abril de 2017

Rezo terças

A noite é mãe de uma criança que berra. Batizei-a de angústia. Não sei se a mãe ou a cria. Enquanto os carros cruzam a avenida penso se peço ou não outra cerveja. Opto por pedir: a cerveja e uma caneta. Um moribundo pede um cigarro com a cortesia de quem aborda uma mulher sozinha. Não nego. Tragar é desatar um nó da alma, imagino o emaranhado que ele deve ter por dentro. Essas são as primeiras linhas desenhadas à punho desde que a praticidade da tecnologia se apossou do meu pouco tempo. Os homens conversam e me observam como se vissem um bicho selvagem por entre os prédios. Dentro do peito arde não sei o quê, pode ser a segunda Heineken ou a euforia em segurar uma esferográfica azul depois de meses. Sinto que domino a atmosfera tragando num ritmo atípico o marlboro vermelho designado aos dias mais complicados. A noite esfria à medida que afio a escrita e esvazio o copo. A vida é mesmo feita de antíteses, eureca! De dentro do bar o homem de verde discute ao telefone com alguém - provavelmente a esposa ou a amante, vai saber - que cobra sua presença. E eu, sozinha, constato por experiência própria, que amar alguém só é possível se pudermos estar sós vez em quando. Hoje não estou rouca nem me esforço pra entender conversas alheias, tudo chega naturalmente aos meus sentidos. A melhor percepção do mundo vem quando sou minha própria companhia​. Escrevo no verso de um livro criando pretensiosamente um adendo à obra. Tudo se mistura: eu e o poema, as luzes dos postes e das estrelas, a cria e o criador. Duvido que Deus tenha desenhado a humanidade sob papel branco com caneta nova porque a maior inspiração vem do despreparo, numa epifania. O homem nasceu duma ressaca d'Ele depois de inventar outras cousas, é a displicência do juízo divino depois que iluminou o céu. Talvez Deus estivesse realmente meio bêbado e talvez eu também esteja. Largada na mesa pelo estresse do expediente me despejo em devaneios ao passo que o garçom recolhe com igual cansaço as cadeiras pra dentro do bar. E ainda é terça feira.

segunda-feira, 17 de abril de 2017

Teto lunar

Não olhei pra lua no dia que todos a admiravam
Talvez seja essa a metáfora de minha existência
Teimosia vez ou outra faz cair de precipício e morro
a cada lua - cheia - até de mim

Deito-me, sem fitá-la, sob sua luz de misericórdia
Sobrecarregada de desapontamento
Esperando por um amor de cheiro doce e beijo quente
Tal qual essa noite que invade meus pulmões

Respiro e exalo o passado maculando a atmosfera
Os nós dos dedos dormentes, entrelaçados,
ensaiam a prece recorrente à confissão dos olhos
Ainda por encararem o circular clarão

Enquanto sorrisos abrem-se pro céu
Cativo inerte medos e memórias
As palavras já ditas assumem tons de arrependimento
A saudade aflita dos arrepios em nucas alheias
Provocados pelo querer

Pêlos excitados com vida nova e calor
O suor de desespero umedecendo os corpos nus
Este sumo salgado escandalizando o próximo ato, pra alguns
E remoendo na garganta de outros, o ressentimento

Cada qual na sua pele, compondo a naturalidade do universo
Brilhos singulares, displicentes, pelo mundo
Amontoados viram força de luz - incandescente
Somos constelação